O Futebol é, na sua essência, uma arte de interpretação e conquista de espaços, criação e potenciação de vantagens e busca por um denominador comum a todos os seus intervenientes – marcar muitos golos e sofrer poucos. Quando se fala em espaços e posse de bola no futebol, estamos, na realidade, a falar de um dilema geográfico que será resolvido por quem ocupar todas as zonas, corredores e sectores do relvado de forma mais racional.
O pensamento sobre o jogo conheceu, ao longo do tempo, diferentes paradigmas e as grandes alterações históricas basearam-se em novas variantes de sistemas tácticos. Desde a “Pirâmide Clássica” que fez sucesso nos anos 30, na qual os jogadores estavam, permanentemente, em movimento para criar confusão ao adversário (1-2-3-5), passando pelos tempos do “WM”, onde se procurou dar robustez ao meio-campo através do 1-3-2-2-3 e fluindo nos já clássicos 1-4-4-2 ou 1-4-3-3. Hoje em dia, vivemos uma realidade futebolística diferente dos velhos tempos, com o abraçar de áreas como a Psicologia, Nutrição, Gestão ou Marketing, entre outras, e a utilização de ferramentas digitais de vídeo-análise e análise de dados estatísticos. A preparação de um simples jogo de futebol é enorme, o cuidado com os detalhes é, muitas vezes, o segredo do sucesso e a busca desse detalhe, a maioria das vezes táctico, tornou o jogo num problema aborrecido, amarrado e previsível. No entanto, nos últimos anos temos vindo a observar uma mudança de “paradigma táctico” – trabalhar com base em contextos tácticos em prol de formações tácticas.
Ora, o pontapé de saída para esta reflexão foi dado na entrevista dada ao Tribuna Expresso, por Carlos Carvalhal, no início de Agosto de 2020, ainda a dar os primeiros passos no clube. Nela, o treinador bracarense apresentava uma nova forma de treinar e jogar, defendendo, sem apontar o dedo a outras metodologias, que os sistemas tácticos como o 1-4-3-3 ou o 1-4-4-2 são mecanismos castradores à liberdade na tomada de decisão, de movimentos, de dinâmicas e interpretação dos jogadores.
Do meu ponto de vista, a reflexão não deve ser superficial e unidirecional, até porque, como em muitas outras temáticas relacionadas com a modalidade de futebol não existem fórmulas mágicas para o sucesso. Assim, o sistema táctico deve fazer parte do modelo de jogo do treinador de futebol e a equipa deve ser preparada para se posicionar de 1 ou 2 formas. No entanto, esses sistemas tácticos, como, por exemplo, o 1-4-3-3 com um historial grande no nosso futebol, ou o agora na moda 1-3-4-3, não devem ser mais que pontos de partida para os contextos tácticos que devem ser interpretados pelos jogadores.
Desta forma, defendo a importância dos sistemas tácticos principalmente nas etapas de iniciação do jovem atleta nas diferentes formas jogadas (3x3, 5x5, 7x7, 9x9 ou 11x11), sempre com objetivo de promover a interpretação, por parte dos jogadores, de que zonas do campo devem pisar, por que espaços ficam responsáveis ou que espaços devem ocupar de forma a dar soluções ao portador da bola, quase como a criação de um mapa do campo e do que é o jogo. A partir daí é o jogo que dita o que fazer, isto é, é o contexto que determina que zonas pisar, que espaços devem ser atacados, que tipo de vantagens devem ser criadas, de que forma podemos atacar o adversário e contrariar as suas virtudes.
Analisando o jogo é essencial o treinador definir os espaços que quer que a equipa preencha, tanto no processo ofensivo e defensivo, sem castrar o jogador que lá deve aparecer. Criando, por exemplo, uma determinada dinâmica em corredor lateral não interessa quem fica a dar largura, a atacar a profundidade ou quem equilibra a equipa, interessa é que esses espaços sejam colmatados.
“Defender torna-te invencível, mas se queres ganhar, tens de atacar’. Isso resume o espírito e mentalidade que quero que a minha equipa tenha.”
A frase é de Gian Pero Gasperini e diz respeito à sua equipa, a Atalanta BC, de Bérgamo, quiçá a equipa que melhor joga com base em conceitos e contextos, sem as amarras dos sistemas tácticos. O treinador italiano, de 63 anos, não nega que as suas ideias de jogo partem sempre do esboço de um mais recorrente 1-3-4-2-1, ou de um mais pontual 1-3-4-1-2, mas que procura dentro desse prisma encontrar sempre “novas soluções”.
Olhando para a Atalanta, verificamos que, por exemplo, o central do lado esquerdo tanto pode estar a equilibrar a equipa com os outros 2 centrais, porque o adversário deixa 2 jogadores preparados para a transição ofensiva como, rapidamente, pode aparecer a rasgar na profundidade, caso sinta que pode criar situações de 2x1 ou 3x2 através de overlap com o ala do mesmo lado. Ou que se um dos jogadores do trio de ataque baixar para servir de apoio frontal aos defesas, posicionando-se na linha intermédia, um dos médios aparece, naturalmente, a rasgar na profundidade ou a, pelo menos, garantir uma solução de continuidade entre a linha defensiva e intermédia do adversário, de onde o seu colega saiu.
A existência de um jogo posicional forte permite que todos os jogadores compreendam a sua missão no jogo mas, acima de tudo, entender também as missões de todos os colegas em campo o que potenciará, em caso de trocas de funções, que haja uma interpretação clara do que deve ser feito em cada situação que decorre naquele determinado contexto.
No que às dinâmicas padronizadas diz respeito, e enquanto treinador, faz-me alguma confusão ver equipas em que, por exemplo, o médio-defensivo baixa constantemente para jogar entre os centrais apenas porque algumas equipas de top o fazem ou equipas onde os jogadores não se podem “libertar” para ir buscar a bola onde claramente existe um espaço por preencher apenas porque a sua posição tem de ser garantida, segundo ordem do treinador. Esses comportamentos não devem ser mecanizados, devem partir de um propósito. Esse médio-defensivo deve baixar para criar linha a 3, caso o adversário salte com 2 homens a pressionar e dessa forma garantir superioridade numérica. E, mesmo aí, não deve ser estanque, já que a vantagem posicional de jogar nas costas dessa pressão pode ser muito mais benéfica para a circulação de bola da equipa do que estar a baixar para junto dos defesas centrais.
Outro caso incomodativo é ver extremos puros a serem obrigados constantemente a jogar por dentro e, maioritariamente, de costas para os defesas e para a baliza em prol da ideia rígida do treinador. Na minha opinião, os extremos devem jogar maioritariamente de fora para dentro, procurando encarar os laterais de frente, usufruindo da sua maior desenvoltura técnica para atrair, fixar e decidir perante a pressão que tem. Jogando por dentro passam mais tempo de costas para o golo, em zonas mais densas e povoadas que lhes retiram o espaço para acelerar o jogo com mudanças de velocidade, de direção e dribles.
Dessa forma, a abordagem da equipa, seja qual for o momento do jogo, ofensivo ou defensivo, deve ter em conta, não só os sistemas tácticos e o confronto de sistemas, mas também os contextos tácticos e as consequentes vantagens numéricas, posicionais e qualitativas (individuais e grupais) que deles sobressaem.
Resumidamente, no plano ofensivo, a equipa até pode ter zonas do campo onde, claramente, pode ter desvantagens numéricas, que poderão pronunciar um desequilíbrio para os adversários, mas nas outras zonas tem claramente vantagens posicionais através de jogadores a mostrarem-se nos buracos entre as linhas intermédias e defensivas do adversário, ou vantagens qualitativas através, por exemplo, de um extremo que no 1x1 vai muito provavelmente desequilibrar o seu opositor direto a maioria das vezes.
Por outro lado, no plano defensivo, de que serve ter um “bloco” de pressão com 5 ou 6 jogadores a pressionar H-H a saída de bola do adversário logo no pontapé de baliza, se depois existe um buraco enorme entre esses homens e uma linha defensiva baixa que pode ser aproveitado pela equipa adversária?
Na minha opinião, a equipa deve partir sempre de uma ideia base, e todas são respeitáveis, de pressionar logo no 1º passe, convidar a sair, aguentar a 2/3 de campo, baixar linhas, etc. E a partir daí convidar o adversário a jogar no seu próprio desconforto, seja através de uma marcação H-H em todo o campo, seja mista, através de situações de H-H e zonas onde se divide o espaço, condicionado sempre o jogo para a zona onde quer abafar o ataque adversário.
Em suma, deve-se ter em conta os diferentes contextos tácticos do jogo, bem como as relações e interações entre os jogadores e as equipas, privilegiando uma ordem – a ideia de jogo - e deve, também, existir uma caracterização daquilo que é o modelo de jogo da equipa e das respetivas acções tácticas. Os sistemas tácticos devem ser analisados e decifrados apenas como pontos de partida para as acções e comportamentos dos jogadores dentro de uma determinada área e função.
Fica, então, evidente a importância do modelo de jogo e, na sua essência, da interpretação do contexto de jogo, enquanto referência coletiva a partir da qual os jogadores analisam e interpretam os problemas que surgem a cada momento do jogo. A perceção do contexto onde a ação se desenvolve é fundamental para um melhor conhecimento do jogo. É através da análise do contexto (posição dos adversários e dos colegas de equipa; espaços mais ou menos ocupados, etc) que o jogador está na posse de toda as informações necessárias para tomar a decisão que aproxima mais a sua equipa do sucesso.
Licenciado em Ciências do Desporto FCDEF-UC
Mestre em Treino Desportivo para Crianças e Jovens FCDED-UC
Treinador UEFA B
Experiência em todos os escalões de futebol, de sub7 a Seniores, enquanto Treinador Principal, Treinador-Adjunto e Coordenador Técnico Eirense (2010-11), EAS-Coimbra (2012-14), Academia N10 (2014-18), Académica OAF (2018-2021), Clube Condeixa e Sporting CP - AFS Coimbra (época 2021-2022)
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