Sou um defensor acérrimo do processo de treino. Encontro neste processo razões mais do que suficientes para acreditar que tudo o que seja criação e preparação para o jogo inicia-se e encerra-se ali, nos microciclos, mesociclos e morfociclos. Sinto que é através do processo de treino que damos vida às nossas ideias e as consubstanciamos através do nosso modelo de jogo.
Sou igualmente alguém que acredita ser possível transformar positivamente os jogadores no sentido de os transportar para a nossa ideia e para o nosso modelo de jogo. No sentido de, respeitando as suas características individuais inatas, procurar potenciar os jogadores e aproximar o que de melhor têm para dentro de um micro-universo mais coletivo. Porque um coletivo será tão mais forte quanto mais capaz for de respeitar as qualidades individuais de cada um, potenciando-as e colocando-as em prol de uma ideia de jogo coletivo que as liberte de forma responsável e as responsabilize de forma liberal.
Contudo o tempo, o jogo e os jogadores têm-me ensinado que existem casos especiais. Casos em que os jogadores, pela sua qualidade, pelas suas características, pelo seu talento, parecem estar “acima” do modelo de jogo. Ou, para não ser mal interpretado, para lá do modelo de jogo.
E não precisamos analisar nenhum campeonato estrangeiro para, na minha opinião, poder encontrar estes casos…
No atual SLB penso que Weigl e João Mário são dois dos melhores exemplos que consigo encontrar. Jogadores talhados para um modelo de jogo que contemple uma aposta firme no ataque organizado e no ataque posicional, Weigl e João Mário não deixam de ser influentes e preciosos no atual modelo de jogo encarnado. Ambos são o farol e o bote de salvamento da equipa aquando do momento ofensivo.
São os principais responsáveis para que a equipa consiga sair com qualidade sob pressão ou para que a equipa consiga respirar quando não existem condições para acionar o ataque rápido ou contra-ataque. São a “cola” que une os sectores da equipa aquando do momento ofensivo, permitindo uma viagem mais acompanhada até às zonas de finalização.
Destoam da azáfama e da correria desenfreada patente num modelo de jogo vertiginoso e desequilibrado, mas não se deixam influenciar nem alteram a sua forma de ser, estar, pensar e executar o jogo. Por muito que alguns digam que só jogam para trás e para o lado, a verdade é que são eles os fiéis da balança no que diz respeito ao critério e à lucidez do momento ofensivo encarnado.
Do outro lado da segunda circular e no atual plantel campeão nacional temos em Sarabia o jogador para lá do modelo de jogo. Amorim manteve as bases do modelo que o sagrou campeão e o consagrou como um dos mais competentes treinadores nacionais da actualidade, mas promoveu pequenas nuances técnico-táticas que simbolizam um upgrade em relação à última época.
Mais do que o posicionamento de Coates aquando do pontapé de baliza para saída curta e apoiada, mais do que o posicionamento de Palhinha e Matheus Nunes, o maior upgrade técnico-tático do atual mais forte onze inicial leonino ocorreu com a chegada de Pablo Sarabia. Um jogador que, do ponto de vista ofensivo, tem um manancial de recursos que o tornam fundamental para o momento ofensivo dos leões, dotando-o de técnica, criatividade, magia, imprevisibilidade e classe.
Amorim percebeu isso e tem promovido uma liberdade de movimentos muito mais ampla do que aquela que a equipa tinha na época anterior. Inteligente e sagaz, o jovem treinador compreendeu que livrar Sarabia de amarras ofensivas é catapultar o jogo ofensivo da sua equipa para patamares que nem sempre são possíveis de treinar, uma vez que, em jogo, os jogadores apresentam e entregam aquilo que o jogo pede. E nem tudo o que o jogo pede pode ser replicado em treino.
A Norte, mais concretamente no Dragão, Luis Díaz é claramente o jogador para lá do modelo de jogo. O início da sua aventura azul-e-branca foi pautada por alguma irregularidade no que a presenças no onze inicial diz respeito, mas ainda assim foi possível identificar um jogador diferenciado. O talento, a relação com a bola, os olhos postos na baliza e a forma como serpenteava sempre que partia para o 1x1 deixavam antever um diamante por lapidar.
Conceição levou algum tempo até perceber como extrair o melhor de Diaz, mas quando o fez, não só libertou o seu jogador mais criativo, influente e decisivo, como também melhorou o processo coletivo da equipa.
O lateral esquerdo (seja Zaidu, seja Wendell) passou a pisar terrenos mais interiores, de modo a que Diaz partisse maioritariamente do corredor lateral esquerdo em zonas mais adiantadas e com maiores probabilidades de receber a bola sem vigilância apertada. As trocas posicionais entretanto efectuadas, e cada vez mais uma constante, entre Taremi e Diaz não só criam novos espaços para o colombiano atacar (Taremi consegue arrastar um ou mais adversários com ele dada a sua capacidade para jogar entrelinhas), como também o aproximam da baliza. Não é à toa que Diaz está na luta pelo título de melhor marcador da Liga Bwin.
A esta afirmação futebolística de Diaz não é alheia a presença de um jovem jogador que, não obstante a sua tenra idade, é um dos talentos mais empolgantes do reino do Dragão e do futebol nacional. Um jovem jogador que também ele caminha para ser um jogador para lá do modelo de jogo: Vitinha.
Com Vitinha, e num modelo de jogo que sempre se pautou pela verticalidade e aceleração quase vertiginosa, o FCP ganhou critério e definição na fase de construção e na fase de criação. O que permitiu a Uribe subir de rendimento, pois o critério dado por Vitinha faz com que a equipa perca menos vezes o esférico e com a equipa mais bem posicionada e equilibrada para a reação à perda.
Nenhum destes jogadores é mais importante do que a equipa. Nem do que o processo de treino que leva à criação e desenvolvimento do modelo de jogo. Mas todos eles têm algo diferente, algo que pode e deve ser visto como um “plus” para o próprio modelo de jogo. Algo que pode e deve ser bem compreendido por quem com eles trabalha, pois se assim for, todos sairão a ganhar. Especialmente o futebol…
Licenciado em Comunicação Social, possuidor do Nível II (UEFA B), defensor acérrimo do Processo de Treino e eterno apaixonado pelo futebol ofensivo. Treinador Principal com dez anos de experiência de treino. Co-fundador do Futebol Apoiado. Colunista do ZeroZero.pt . “Romântico”, “lírico” ou “utópico”, consoante a ideologia defendida por cada um, mas acima de tudo um ser humano coerente, congruente e de convicções fortes inabaláveis.
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