Ser campeão é saber pedir ajuda
- Pensar o Jogo
- 4 de jul. de 2020
- 5 min de leitura
Apesar do Desporto ser a «vida» de muitos atletas, existe vida além do Desporto. O professor Manuel Sérgio descreve na perfeição essa ideia ao defender que «o futebol é uma ciência humana e que o Homem está no centro de tudo». Mas para um adepto ou até um simples simpatizante, o atleta é só o atleta e aquilo que dá em campo. O «show». A boa ou má performance. O quanto contribuiu para o clube que representa e para a alegria ou tristeza de quem está associado a ele. Embora as emoções desse Homem que veste o equipamento e vai para o espetáculo pouco interessem na hora de serem avaliados pelos golos que marcaram, as defesas que fizeram, os passes que falharam, as ocupações de espaço que não fizeram, as decisões que tomaram e até o que disseram no final do jogo à comunicação social.
O Desporto é um negócio social onde o atleta é tratado como sendo meramente um produto (sem emoções), e não um prestador de serviços. O atleta é comprado e vendido. Está no mercado. Dentro do prazo de validade de um atleta (que em diversas modalidades termina em idades ainda jovens!). E para que esse produto se torne apelativo tem de render – primeiro em campo, para depois render dinheiro. Quando fica gasto não dá p´ra mandar para a reciclagem. «Encosta as botas», como se costuma dizer. Num mundo que trata os atletas como se de coisas se tratassem, existirá espaço para o Homem que integra o atleta?
Em boa verdade, nem sequer interessa o Homem. Não rende (dinheiro...) e às vezes só atrapalha! (porque o nosso emocional é tão imprevisível e tão humano!). Quando existe esse espaço pessoal em capas de jornais, TV, redes sociais e meios afins é mediatizado com episódios menos felizes da vida do atleta (porque a felicidade não vende capas!). A maioria das pessoas compra a desgraça alheia, a tragédia e o drama das vidas dos outros, como uma espécie de conforto para si mesmas - um alento de não se sentirem sós na sua própria infelicidade e desgraça. Ainda assim, o atleta continua a ser Homem, e basta mostrar um pouco da sua humanidade (e imperfeição) para ser de imediato «atacado». Já não basta o atleta ter de ser apenas o atleta quando está em jogo, como também fora dele tem de ser apenas o atleta. A liberdade é, em certas alturas, um preço muito alto a pagar por se terem tornado em figuras de referência no mundo do Desporto. Não podem ser quem são, mas têm de ser quem devem ser. E isto afasta qualquer ser humano do centro de si mesmo. A certa altura, tanto deixamos de ter contacto connosco que nos perdemos mesmo de nós próprios e não sabemos o caminho de «volta». Até mesmo em casa, o atleta não se «sente em casa». Sim! Eles têm família, namorados(as), companheiros(as), amigos(as), filhos(as)! Sim, as famílias deles têm expetativas acerca deles – de como se devem comportar, do que devem ou não devem falar, do que é permitido ou não é permitido sentir… Sim! Eles também sentem cobranças por parte dos(as) namorados(as) ou companheiros(as) que lhes exigem tempo e as «obrigações» de uma relação a dois. Sim! Eles também têm filhos (pequenos ou grandes) que precisam de pai e de mãe, cuja sua ausência não consegue ser compensada em nenhum momento posterior (porque não conseguimos fazer o tempo voltar atrás ainda!)...Sim! Eles têm tantos outros problemas condicionados pelas suas carreiras ou tantos outros problemas que todo o Homem tem, com a diferença de que um atleta:
- não chora.
- é exemplar.
- não pode falhar.
- é resiliente.
- tem capacidade de passar por qualquer desafio e adversidade.
- é solidário.
- nunca se deixa ir abaixo.
- ganha muito dinheiro (e isso compensa o resto!)
- é feliz
- faz o que gosta
- é forte (física e mentalmente!)

Em suma, é perfeito! O atleta pertence àquela classe de seres que não são humanos. Ou que não podem ser, mesmo sendo. Por um lado, as expetativas culturais acerca do atleta ser obrigado a ter uma mentalidade de campeão e, por outro lado, a tentativa do atleta evitar essa desilusão percebida pelos outros acerca de si (porque é um negócio social) conduzem o próprio atleta e Homem a fechar-se em si mesmo. Um estudo conduzido por Whato e colaboradores realizado em 2016 revela que os atletas procuram menos ajuda ao nível da sua saúde mental do que os não atletas, pelo medo do estigma de serem considerados fracos pelos outros atletas, pelo treinador e pela comunidade desportiva e porque o conceito de sucesso é claramente incompatível com o ser-se «fraco». Aliás a saúde mental parece ser contraditória ao conceito de «mental toughness» e ao sucesso desportivo na maneira como ele é concebido.
O perfeccionismo desajustado, a vergonha, a culpa, o medo do estigma, o medo de não estar à altura das expectativas tornam-se adversários que passam a residir no Homem-atleta e com os quais ele tem de travar uma batalha silenciosa e solitária dentro e fora de campo, sem início, intervalo e fim. Para um atleta não existe um pano que cai no início do «espetáculo», nem um pano que cai no fim. O jogo não começa no momento do apito inicial e, por isso, é difícil imaginar que existem bastidores secretos e inacessíveis a quem não vai «performar», onde o «espetáculo» começa ainda antes dos espetadores terem acesso a ele.
O quê que o Homem busca quando decide ser atleta? É algo que todos os atletas se devem perguntar.
O propósito. Conhecer-se e aprofundar-se em si. Ter consciência desse propósito, que em muitos casos encobre um desejo enraizado de uma satisfação de necessidade que não foi conseguida de outra forma. Procura o básico para sobreviver? Procura conseguir melhores amizades? Procura conseguir um relacionamento com o(a) companheiro(a) dos seus sonhos? Procura ser reconhecido pela família? Procura fama ou reconhecimento por parte dos outros? Procura sentir-se mais confiante? Procura gostar mais de si mesmo? Ou procura aceitar-se? Procura conhecer-se e conhecer os seus limites? Procura desafio? Procura superar-se? Procura transcender-se? Esse propósito deve dar sentido não só à sua carreira enquanto atleta, mas à sua realização enquanto pessoa porque se assim não for, o tempo que um atleta investe em ser melhor dentro de campo é o tempo que ele perde para investir em ser melhor fora dele e a sua existência enquanto Homem perde e ganha sentido apenas na medida em que se torna melhor ou pior atleta.
Um atleta não é uma coisa. Não é um produto. Não é uma máquina. É um ser humano. Tem limitações como todos apesar de ter alguns poderes extraordinários em campo. Sempre que esteja ou sinta que está numa situação «fora do comum» pode e deve procurar ajuda de um psicólogo ou médico, que atue ao abrigo dos princípios éticos da confidencialidade e que tenha conhecimentos e competências para identificar e ajudar a resolver o problema, zelando pela proteção da sua integridade física e psicológica e atuando em última instância na proteção da sua própria vida.

Ser campeão é saber pedir e aceitar ajuda. E ajudarmos alguém a tornar-se campeão é abandonarmos o estigma de que os atletas têm de ser mentalmente resistentes o tempo todo e perfeitos. Até quando se estica muito um elástico ele se quebra. Não existe nenhum material na natureza que não se quebre. Porquê que nós, seres humanos, e em particular os atletas teriam de ser de uma matéria diferente de tudo aquilo que existe?
Porque apesar do Desporto ser a «vida» de muitos atletas, existe vida além do Desporto.
REDIGIDO POR: Diana Jorge
Psicóloga Clínica e do Desporto, entusiasmada pelo «jogo» de futebol, mãe com muita gratidão, apaixonada pela natureza, rendida à meditação e oração, rebelde intelectual, aprendiz da vida, curiosa desde pequena e buscadora do sentido da nossa existência e dos mistérios do Homem e do Universo.
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