O projeto Ajax como exemplo para os Grandes em Portugal
- Pensar o Jogo
- 29 de out. de 2021
- 8 min de leitura
Atualizado: 19 de nov. de 2021

Sabem aquele clube que quase todos os anos tem uma equipa de alto nível, que investe sempre bem, que aposta e tira partido da formação como ninguém, que garante sucesso desportivo nacional e internacional recorrentemente e que depois rentabiliza financeiramente estes êxitos? Vem-me logo à cabeça o Ajax!
Quais as razões para o sucesso da equipa dos Países Baixos? O que faz de diferente? E porque razão os clubes portugueses não conseguem ter estes resultados?
No futebol tudo se rege em torno de três palavras: Projeto, Assertividade e Consistência.
A definição do projeto é algo complexo, que terá de ser bem delineada, consistente e ter em conta fenómenos de peso evidente. Desde logo, a história do clube e da cidade, assim como a mentalidade das suas gentes. Fala-se muito da tal "mística". A mística é a raiz do clube, onde tudo começa, é o orgulho em representar um emblema, pelos seus ideais, princípios e passado. É a partir dela que se desenvolve tudo ao redor do futebol e é com ela que vem a paixão, amor e emoção pelo jogo. Honrar o passado e integrar os valores que este nos passou é essencial para projetar o clube para o sucesso. Depois o passado recente, o modelo desportivo mais comum nos últimos anos, o presente desportivo, financeiro e estrutural, a qualidade do plantel principal e das equipas de formação são essenciais perceber de forma a entender o rumo a seguir.
A partir da definição de projeto vêm as decisões que devem alimentar esse projeto. Muitas decisões são tomadas no dia-a-dia de um clube, mas as que nos interessa comentar neste artigo são, fundamentalmente, as escolhas de treinador e jogadores. A assertividade e coerência nas decisões são o que faz crescer o clube para um nível superior. Quando as decisões não são as melhores, ainda para mais num longo período de tempo, o clube acaba por se ressentir e obter maus resultados.
Falemos um pouco do Ajax e depois comparemos com o que têm feito os clubes portugueses.
Quem acompanha o conteúdo do site sabe a relevância que dou à área do scouting. O Ajax na temporada de 18/19 esteve a um passo da final da Liga dos Campeões, tendo sido eliminado pelo Tottenham no último minuto de jogo. Este era a equipa principal desse ano:

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Desta equipa, os jogadores com maior potencial foram transacionados e, apenas, Blind, Mazraoui, Tagliafico, Tadic e Neres são opções para a equipa atual. A restante equipa teve de ser construída a partir de jogadores da formação e de contratações.
O treinador ficou e as ideias também, o que facilitou e, muito, o resto do processo. As contratações realizadas foram sobretudo de jovens de grande potencial, com capacidade para renderem desportivamente no imediato e financeiramente no futuro. Depois optaram por jogadores que dariam rendimento imediato, experiência e que estão familiarizados com a liga, exemplos de Haller, Sketelenburg, Berghuis ou Klaassen. Praticamente todas as contratações certeiras do ponto de vista custo benefício e que acrescentam qualidade ao plantel.
Veja-se algumas das contratações que estão no atual plantel do Ajax nestes últimos dois anos (com valores de transferência retirados a partir dos dados Transfermarkt):
- Haller 22 M, ponta de lança de elevada estatura, goleador com perfil técnico interessante;
- Antony 15,75 M, virtuoso extremo esquerdino de elevado potencial;
- Edson Alvarez 15 M, defesa ou médio defensivo, muito forte na recuperação de bola;
- Daramy 12 M, destro, veloz, desequilibrador de eleição e com golo; tem tudo para ser um elemento de enorme futuro para o clube;
- Klaassen 11,7 M, experiência, médio ofensivo com qualidade técnica, definição e golo;
- Kudus 9 M, tal como Daramy contratado na Liga Dinamarquesa, falámos dele antes de ir para o Ajax (podes ver aqui);
- Lisandro Martinez 7 M (falámos nele no nosso último artigo);
- Berghuis 5,5 M, qualidade técnica, definição e desequilíbrio;
- Klaiber 4 M, lateral de perfil ofensivo, segunda opção habitual de Tagliafico;
- Gorter 1 M, sem minutos na equipa principal, confesso que não conheço o jogador;
- Sketelenburg custo zero, experiência e qualidade elevada apesar da idade;
- Pasveer custo zero, experiência.
Agora façamos uma comparação com o que se passou por Portugal nos últimos anos e relembremos o que se aconteceu na temporada de 2014/2015 quando a escolha do FC Porto para substituir Paulo Fonseca foi Lopetegui. Na altura o técnico espanhol tinha experiência nas camadas jovens da seleção de Espanha, mas ainda não sabia o que era estar à frente de um clube com a exigência competitiva do FC Porto. Além disso, o perfil de treinador de Lopetegui não tem e nunca terá nada a ver com aquilo que é o perfil de treinador compatível com o Porto. Apesar do investimento elevado e dos plantéis de qualidade, o treinador espanhol nunca conseguiu alcançar os objetivos e abandonou a cidade invicta sem deixar saudade. Só a partir da chegada de um treinador com o tal perfil que vos falei, falo de Sérgio Conceição, o clube conseguiu entrar nos eixos e voltar a recuperar o tempo perdido.
Vamos a outro exemplo. Na temporada 16/17 o Benfica tornava-se tetracampeão, declarava e gritava a hegemonia em Portugal. Além disso, assumia o objetivo claro de marcar pontos na Europa e de, cada vez mais, elevar o seu reconhecimento fora de portas.
O que acabou por acontecer? O Benfica nesses anos vendeu grande parte dos seus jogadores por preços exorbitantes, contratou jogadores que não ofereciam metade do rendimento e que não possuíam metade do potencial dos jogadores que saíram.
A equipa, que já vinha a enfraquecer mesmo nos anos em que foi campeã, depois de decisões completamente disparatadas ao nível do scouting de jogadores, ficou a uma distância grotesca em termos de categoria do plantel principal de plantéis do passado recente do clube (e essa distância não era tão grande, porque a qualidade dos jogadores da formação fazia por disfarçar). Esta má gestão ao longo de três anos trouxe prejuízos ao Benfica que ainda hoje se denotam.
A partir da chegada de Jesus a equipa inicial mudou praticamente toda, o investimento foi súbito e descomedido (e mais uma vez muitos dos jogadores escolhidos não tiveram o critério desejado), a crença nos jogadores da formação diminuiu de forma absurda e o projeto perdeu-se. Quer-se sucesso para o clube, mas quando questionamos como, a questão paira no ar. Percebam por vocês e vejam a falta de critério nas contratações do Benfica nos três anos depois de ser tornarem tetracampeões nas imagens abaixo. Imagine-se o que o Benfica se poderia ter tornado com todo aquele dinheiro, caso o investimento e aposta na formação tivesse sido criterioso. Estaria certamente a um nível bem superior aos seus rivais.

Contratações temporada 17/18

Contratações temporada 18/19

Contratações temporada 19/20
Dados e imagens Transfermarkt
Falemos agora do trabalho de formação. É verdade que o Ajax realiza um trabalho de recrutamento de jovens para a sua formação absolutamente fantástico e, por isso tem todos os anos jogadores da sua escola a alimentar e a ser destaque no plantel principal. Mas terá os Países Baixos maior qualidade e quantidade em jogadores jovens que Portugal? Os factos dizem que não. Acredito, aliás, que a maioria das gerações portuguesas seja bem superior às gerações holandesas. Então o que faz de bem o Ajax e o que fazem de mal os clubes portugueses para não terem tamanho sucesso?
Nos últimos anos os clubes portugueses perceberam que o ouro estava na formação e têm conseguido ter um aproveitamento muito positivo desta. No entanto, continuam a cometer erros de diferentes variáveis.
A sobrevalorização da formação é um dos erros. O Benfica fez isso nos últimos anos, principalmente, com Lage. Renato Paiva dizia em entrevista que os jovens jogadores (a não ser os sobredotados) necessitam de 60 a 70 jogos na equipa B para dar o salto para a equipa principal. Não poderia estar mais de acordo. O talento tem de ser preparado para que traga rendimento. Normalmente, os jovens da formação têm lacunas que precisam de ser trabalhadas antes do passo para a equipa principal. Nalguns casos isso não aconteceu e jogadores que ainda não estavam preparados tiveram de dar resposta num degrau bastante acima daquele que estavam na altura. O rendimento não foi o melhor e as dúvidas em redor do talento e da sua maturidade para a alta competição persistiam. Aconteceu isso com Tomás Tavares, Nuno Tavares e Jota. Três meninos de qualidade inegável, que ainda darão a volta por cima, mas que perderam o seu espaço no plantel dos encarnados.
Outro dos erros bastante comuns é aquilo que gosto de chamar aposta de circunstância. A aposta num jogador jovem ter de ser analisada e escrutinada. Se for para apostar a sério num jogador que tem qualidade para estar no patamar principal, que seja algo que se prolongue no tempo. O jovem jogador precisa de confiança e de jogo para poder evoluir, ainda para mais num contexto tão competitivo como o dos três grandes. Vou dar como exemplo, novamente o Benfica e falar dos casos de Gedson e Florentino. Ambos já foram titulares e conseguiram ter rendimento elevado na equipa encarnada. Ambos se lesionaram e, de repente, a sua aposta não se prorrogou. Acabaram emprestados a equipas com melhores individualidades que o Benfica e não tiveram tempo de jogo. A verdade é que são dois médios de grande talento que podem dar rendimento à equipa principal, mas que não são escolhas em detrimento de jogadores que a meu ver têm menos qualidade. Esta incapacidade gritante de promover a formação ou melhor, até de a despromover, tem custado caro ao Benfica, desportivamente e financeiramente.
Voltemos ao Ajax para dizer que estes erros de aposta na formação não acontecem na gestão desportiva do clube holandês. Os jogadores preparados, mas que pela grande qualidade da equipa principal, não têm a sua oportunidade, são emprestados ou vendidos. Os que têm o nível de qualidade para acrescentar valor na equipa principal, acompanhado de rendimento são integrados e apostas concretas do clube. Assim, a formação consegue ser objeto de rentabilização desportiva e financeira.
Depois a equipa holandesa tem um modelo de jogo muito bem definido e transversal ao futebol de formação. Isto permite que os jogadores partilhem as mesmas ideias de jogo e evoluam a partir daí. As equipas portuguesas optam por modelos de jogo diferenciados do futebol de formação. O que acontece? Muitas vezes, os jovens jogadores têm características que não se coíbem com as características que o treinador principal determina para determinada posição ou têm um estilo de jogo diferente daquele que o treinador pretende e, por isso, não são apostas ou precisam de um período de tempo, normalmente longo, para crescer naquilo que o treinador quer.
Por fim, vem a consistência. Nós somos uns apressados, queremos tudo para ontem, mas o desenvolvimento de um projeto demora tempo. Acreditar nas ideias que se definiram, analisar o momento do clube e perspetivar o futuro são pequenas tarefas importantes para as pessoas que mandam no destino do clube.
Dou-vos mais dois exemplos. Sabem quantos anos esteve Klopp no Liverpool antes de vencer a Premier League? Só à sua quinta temporada conseguiu ser campeão. A crença no trabalho diário, nas nossas ideias e nas decisões que são tomadas é crucial para fazer crescer todo um coletivo.
Outro exemplo: o campeonato ganho na época transata pelo Sporting deveu-se muito à tremenda escolha nas contratações, na aposta em jovens da formação com muita qualidade, à capacidade de Rúben fazer crescer a equipa e as suas individualidades, e, muito também, pela sua comunicação e consistência na ideia que tinha para o clube. O auto-controlo, a serenidade, o equilíbrio emocional e a gestão de expetativas que Amorim passava tanto para a equipa como para os adeptos fez com que a equipa entrasse em campo de forma muito mais descomplexada. A partir daí conseguiu criar um grupo forte e unido e a nível de jogo jogado apresentava dinâmicas muito bem trabalhadas e que garantiram sucesso.
Este Sporting é, aliás, um exemplo claro de como trabalhar bem em Portugal - um projeto claro e bem definido, capacidade de ver à frente e analisar o potencial, aquisições criteriosas para o modelo desportivo e para as ideias de jogo da equipa e um treinador com muita fome e com um longo e glorioso caminho pela frente.
O Ajax é um clube único a nível mundial, porque mantém a mesma linha e não se desvia dela. Tudo em torno do clube roda em volta do projeto e as decisões são sempre compatíveis e coerentes com a ideia principal que se quer. Quando é assim, os objetivos são muito mais facilmente cumpridos.
Num país desportivamente menos capaz que Portugal, surge um clube que forma uma equipa fortíssima a cada 3 anos e compete cara a cara com grandes europeus. Numa altura em que se fala da incapacidade dos clubes portugueses lutarem contra "Bayerns" ou "Liverpools" desta vida, não será necessário olhar-se para dentro e perceber o que se faz de mal? É que o Ajax não investe mais do que o Benfica, por exemplo.
Introspeção e pensamento no futuro, só assim se conseguirá melhorar...
Redigido por Diogo Coelho
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