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Do Clássico para a realidade do Futebol Nacional



O que sucedeu na passada sexta-feira durante o clássico entre FC Porto e Sporting CP foi deveras surreal, embaraçoso e vergonhoso para todos os intervenientes de um fenómeno cultural como é o Futebol. Não é nosso apanágio discutir momentos ou intervenções que não coabitem com o que deve ser a prática desportiva. No entanto, creio que o projeto Pensar o Jogo tem uma vocação de missão dentro do Desporto e, especialmente dentro do Futebol. Missão de olhar e refletir para e sobre o Desporto, de forma a alterar mentalidades, pensamentos e/ou formas de agir.


O clima de instabilidade vivido ao longo dos 90 minutos com destaque para as constantes quezílias entre jogadores, tentativas de iludir e influenciar o árbitro, perdas de tempo e para os tristes momentos pós o apito final, demonstram um querer ganhar a todo o custo. Todo o jogo teve carregado de momentos em que não se quis jogar, em que as entradas tinham a intencionalidade de agredir o adversário, em que a pressão e intimidação sobre o árbitro era constante, em que houve ameaças à integridade física, em que até dirigentes e responsáveis pela organização do jogo trocavam gestos pouco amigáveis com todos aqueles que vissem pela frente.


Até que ponto o Futebol Português vai esperar para desenvolver uma mudança profunda? Onde começa a mudança de mentalidades que tanto se insiste?

O Professor Manuel Sérgio dizia numa daquelas suas frases que marcam e levam a uma constante reflexão que "a mudança no Futebol é cultural". É exatamente aqui que se encontra a brecha que permite situações lamentáveis como as do Estádio do Dragão continuem a acontecer.


O Futebol é o fenómeno de maior relevo do mundo contemporâneo, não poderá haver dúvidas disso. Os ajuntamentos que o Futebol permite, não são possíveis em nenhum outro fenómeno cultural. Um golo de uma equipa como o Benfica, Sporting ou Porto poderão fazer vibrar milhares e, até, milhões de adeptos. Ora será praticamente impossível imaginar algo semelhante em qualquer outro evento cultural.


Este arrebatamento populacional leva a que o Futebol obrigatoriamente tenha de estar rodeado de bons exemplos. A relevância deste facto não estará só associada ao presente, mas também ao futuro. Bons exemplos geram bons exemplos, mas o contrário também acontece. Num cenário hipotético em que uma criança que joga Futebol veja tudo aquilo que se passou no clássico, não terá maior tendência a achar aquele tipo de comportamento normal? Não será mais provável replicar o comportamento que muitos dos seus ídolos tiveram durante a partida? É na relação com o que observamos e ouvimos que nos formamos enquanto pessoas e exemplos como os do clássico indiretamente acabarão por ser processados pela criança. Jogadores e treinadores têm uma responsabilidade enorme, devem ser acima de toda a evidência figuras exemplares, íntegras e éticas.


O Futebol Português vive demasiadamente de resultados; aquele que fica em segundo lugar é o primeiro dos últimos; o que venceu, mesmo que não jogando da melhor forma, é sempre melhor do que o que ficou próximo, apresentou excelente futebol e não venceu por meros pormenores; aqueles que fizeram o melhor trabalho possível, não ganhando serão crucificados... Jorge Jesus, dizia em conferência de imprensa, que a melhor equipa era é a que estava em primeiro, pelo mero sinal objetivo de estar no topo da classificação. Obviamente que nem sempre será assim... Aqueles que não atingem os objetivos, mesmo que as ferramentas para o fazerem sejam altamente limitativas, são praticamente sempre prejudicados. Nem sempre se consegue ser o melhor, há evidentemente que analisar a competência do trabalho realizado e perceber as circunstâncias que o clube vivencia. Deixo uma questão: Seja Sporting ou Porto a ficar em segundo e mantendo o mesmo nível qualitativo que têm demonstrado, será possível dizer que esse segundo lugar fez uma má temporada?


A palavra "Projeto" em Portugal é puro devaneio (salvo exceções - estaria a ser injusto caso não o evidenciasse). É dita várias vezes na comunicação social, no entanto, se existem projetos, então são muitas vezes mal estruturados. Despedir um treinador com 5 jornadas de competição, não poderá ser considerado projeto. A imperiosidade pela vitória e pelo alcançar dos objetivos leva a ações que muitas vezes não são as corretas.


Está na hora de se dar voz a quem mais merece pelo trabalho, dedicação, valores e qualidade, mesmo que nem sempre consiga ter o sucesso que seria pretendido. Está na hora de desenvolver planeamentos respeitáveis a curto, médio e longo prazo para clubes de acordo com as condições que podem oferecer e de dar tempo de trabalho aos que tentam de tudo para levar o clube no melhor caminho. É tempo de dar relevo a quem pretende jogar, a quem enriquece o nosso campeonato e de desenvolver regras e punições para aqueles que não promovem o jogo.


Jogadores, treinadores e dirigentes terão de se respeitar mutuamente e, acima de tudo, respeitar o Futebol. Quem não respeita o adversário nunca conseguirá ser respeitado pelos outros e também dificilmente se estão respeitar a eles mesmos. O Futebol sem adversário não existe, certo? A rivalidade não deve ser vista como guerra, o adversário não é o inimigo. A transcendência e superação de um coletivo só será possível quando o adversário é forte e nos oferece dificuldades. Adversários mais fortes, tornam-nos também mais fortes, porque nos obrigam a refletir, trabalhar mais e inovar.


Os treinadores aparentaram ter uma postura correta, mas do lado dos jogadores e dirigentes isso viu-se bastante pouco. Tenho perfeita noção que a circunstância clássico e suas vicissitudes acabaram por contribuir no incendiar do clima e levar a atitudes irrefletidas. Isso, obviamente não explicará tudo. O comprometimento em prol do coletivo é altamente bem vindo, desde que para isso não se entre em jogos que não promovem o espetáculo. Se é verdade que os jogadores são os principais intervenientes do jogo e que devem transcender-se durante a partida, não é menos verdade que são responsáveis por trazer valores e comportamentos treinados e incutidos pelo meio onde coabitam, nomeadamente por treinadores e dirigentes. Em consonância com isso, deixo no ar a palavra "Liderança". É com base nela que os coletivos funcionam, pensam, se desenvolvem e agem. Sem uma liderança adequada, organização, respeito mútuo, justiça e ética tudo o que pode ser bom se destrona. A crítica inevitavelmente irá muito para a fraca liderança imposta pelo árbitro, mas acima de tudo devemos pensar que mensagem foi passada e que comportamentos foram praticados pelos líderes máximos para que a resposta dos jogadores seja a que se viu.


"O Desporto reproduz e multiplica as taras da Sociedade" - Professor Manuel Sérgio


Vivemos numa sociedade imediatista, conservadora e de aparências. O Futebol é um espelho incrível da sociedade, ora vejamos:


- A sociedade preza o que é jovem e descarta o que é velho. Quer o imediato e repugna o crescimento natural e moroso de um processo futuramente grandioso. As pessoas têm receio do processo, quando na verdade é o que dá mais gozo. Até ao sucesso há praticamente sempre um caminho acidentado, no entanto no final o trabalho será recompensador. Os clubes vivem de planeamentos e projetos só assim alcançaram sucesso e por lá se conseguirão manter, no entanto muitas vezes o processo fica de parte para que se tente o sucesso imediato.


- Existe uma panóplia de antigos grandes craques que deram muito ao Futebol Português e que não têm o reconhecimento merecido. Honrar no presente aqueles que nos honraram no passado promove a cultura desportiva de todos os intervenientes.


- O conservadorismo está altamente ligado ao Futebol. São necessárias novas regras que melhorem o Futebol que se pratica em Portugal - regras objetivas, lineares, coerentes e congruentes.


- O Futebol atual está cada vez mais padronizado, tático e amarrado. As equipas até poderão ser mais organizadas defensivamente, mas privilegiam menos o talento, a liberdade, a criatividade que deverá também ela ser imposta, até para bem do espetáculo e de quem o assiste. O medo de perder ou de sofrer acaba por ser variadas vezes superior à vontade de praticar o "nosso" futebol. A vertente resultadista tem uma óbvia relação com tudo isto.

- A nossa sociedade privilegia o aparentar ser ao ser. O intuito passa por esconder e disfarçar lacunas que deverão ou deveriam ser trabalhadas. No Futebol passa-se exatamente o mesmo. Todos querem chegar ao topo nem que para isso tenham de jogar sujo, simular, perder tempo, entrar em jogos de palavras e muitas outras ações que todos nós conhecemos. Tentam esconder dessa forma lacunas no Modelo de Jogo que precisam de mais trabalho.


O clássico serve apenas como mais um exemplo que deverá ser objeto de reflexão de todos aqueles que estão ligados ao Futebol e até para adeptos, que também terão de alterar a forma como olham para o jogo.


Nós temos os melhores jogadores, os melhores treinadores, seleções altamente competitivas, porque razão não conseguimos acompanhar este êxito em valores e comportamentos que enriquecem o nosso campeonato? O Futebol sempre foi e será das pessoas. A mudança cultural terá obrigatoriamente de existir e isso apenas será possível com tempo, bons exemplos dentro e fora de campo, entidades que consigam educar por meio de conteúdo de entretenimento o adepto e decisões relevantes e assertivas por parte dos órgãos máximos. Caso isso não seja feito, corremos o risco de exponenciar o número de indivíduos que se afastam deste Desporto. O Futebol deve estar de mãos dadas com a Ética e com os bons valores. Sem Ética o Futebol perde toda a sua essência.


No meio de tanta cegueira e alienação do que ao jogo jogado diz respeito, não deixou de haver quem quisesse, de facto, jogar (Zaidu foi um exemplo claro disso).


Por Diogo Coelho


Fundador do Pensar o Jogo

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