A importância do perfil do Treinador no Futebol de Formação
- Pensar o Jogo
- 16 de jun. de 2020
- 6 min de leitura

Fonte: UEFA
"Não te posso fazer enganar um cone, como o vou fazer!? Seguramente que o vais driblar, é um cone. Fácil. Depois meto à tua frente uma pessoa e não será o mesmo. Vai mexer-se, não é o mesmo. Estamos a errar na metodologia e método para ensinar o menino a jogar. Se me disseres que vamos usar os conezitos para a coordenação, perfeito. Mas não metas cones e digas que estás a desenvolver o drible porque é mentira. Desenvolvi a minha gambeta na rua, ao lado de minha casa, a driblar os meus amigos. Agora nas academias metem miúdos a fintar cones e dizem que estão a desenvolver o drible. É mentira, não estão a desenvolver nada. É um grande problema. Já viste algum jogo com cones e as escadas que usam?".
A frase é de Dario Fernandez, ex-jogador argentino e actual treinador de formação de futebol feminino no FC Dallas, dos E.U.A., e encaixa que nem uma luva para explicar algumas das problemáticas das metodologias implementadas, organização e planificação de treinos em atletas muito jovens.
Estou há quase 8 anos ininterruptamente ligado ao futebol de formação em diferentes contextos, academias/clubes, mentalidades, competições e a trabalhar com diferentes faixas etárias. Ao longo do tempo com o auxílio de colegas mais experientes, na busca de conhecimento e fazendo do treino o meu laboratório fui procurando melhorar e aperfeiçoar as minhas ideias, isto é, as ideias que caracterizam o jogar das minhas equipas.
É natural que existam várias ideias e mentalidades no futebol, não há receitas mágicas e muito menos fórmulas certas para tomar as melhores decisões ou ganhar jogos, existem equipas e, respectivamente, atletas competentes a jogar em ataque posicional como em ataque rápido, a reagir e pressionar logo após a perda ou a baixar linhas e defender em bloco. No entanto, algo que tem de ser muito bem definido desde o início da época desportiva é o que o treinador pretende para a sua equipa, aqueles que serão os alicerces em todos os jogos, que nunca devem ser colocados em causa ou alterados seja qual for o jogo ou o adversário, que ideias e dinâmicas pretende implementar, sempre em consonância com a cultura e filosofia do clube, a identidade do mesmo, o contexto competitivo onde está inserido, a faixa etária com que trabalha e a própria qualidade dos jogadores de que dispõe – o Modelo de Jogo.
Vivemos numa sociedade resultadista e extremamente competitiva. É complicado mudarmos essa mentalidade aos jovens atletas porque é essa a mensagem que vem de casa, dos seus pais, dos irmãos mais velhos, dos avós, etc. A maioria deles estão habituados a ser aplaudidos e elogiados pelos seus por conseguir chutar mais longe, por serem mais rápidos ou por jogarem simples e unicamente para ganhar.
Na minha filosofia, esta identidade não existe. Como jogador gostava de ter a bola, usufruir dela, partilhá-la com os meus colegas e é precisamente isso que pretendo das minhas equipas. “Se o futebol se joga num relvado é para a bola andar pelo chão”, devemos procurar jogar curto, criar várias linhas de passe ao portador da bola, ser proactivo e mostrar para jogar, fintar e sentir-se livre para o fazer, ter coragem para arriscar, arriscar a jogar desde trás, a fintar em zonas perigosas, a tentar um cruzamento de letra ou um golo de calcanhar, aceitar que o erro vai fazer parte dessa vivência e que depende de nós procurar as melhores soluções. Um treinador de futebol de formação deve dar liberdade aos seus atletas, quanto mais baixa a idade, maior a liberdade, porque sem ela não existe criatividade e desenvolvimento do talento individual. Enquanto agentes directos da evolução e desenvolvimento dos atletas devemos passar a ideia de que eles é que determinam o jogo, são os jogadores que ditam as acções porque são eles que andam lá dentro, que guerreiam, que lutam, que tiram o máximo prazer por ter a bola nos pés. Devem criar, inventar e ser livres, porque essa é a melhor forma de se exprimirem.
O estilo de liderança e respectiva comunicação do treinador revelam-se como elementos essenciais neste processo, podendo exprimir-se de diferentes formas.
Uma curta viagem pelos campos de futebol deste país demonstraria que muitos dos treinadores de futebol são os chamados “treinadores Playstation”, que gritam, gesticulam, usam calão, reclamam com o árbitro e com os seus jogadores, que dizem em todos os momentos o que o jogador tem e deve fazer, que deve procurar meter a bola na frente rapidamente e que se pautam por um estilo de liderança autocrático.
Na minha opinião, o treinador deve, como é óbvio, orientar os seus atletas mas dando-lhes pistas do pretendido, deixá-los descobrir as melhores soluções, deixá-los errar para depois sim confrontá-los e ajudá-los a chegar à melhor solução. Quando éramos pequenos e jogávamos com os nossos amigos do bairro, da nossa rua ou da escola, não existiam treinadores de fora a dar palpites, amava-se a bola e o jogo, festejava-se o golo como se fosse uma final no Maracanã.
É isso que que se deve incutir nos escalões de formação. Que se goste do jogo antes de se gostar de ganhar, que se valorize o ter a bola, que os jogadores se associem uns com os outros e juntos viajam em busca do sucesso e, acima de tudo, que sejam felizes. Nunca impor ideias, mas sim partilhá-las, ajudá-los a crescer, desenvolver e aprender com liberdade total.
A pressão é outro dos problemas no futebol de formação. Como existe a tal mentalidade resultadista, vemos repetidas vezes os miúdos a caírem em lágrimas quando perdem uma final ou falham um golo. A mensagem que lhes deve ser passada é que ninguém sabe se Cristiano Ronaldo, Messi ou Bernardo Silva foram campeões de Benjamins, Infantis ou Iniciados, mas que todos sabemos que de alguma forma eles chegaram lá acima, ao futebol profissional, já que com a sua idade procuravam fazer as coisas bem e queriam-se divertir. Porque quando chegarem ao futebol profissional terão muito tempo para levar com pressão e angústias.
A competição na formação serve única e exclusivamente para desenvolver e aperfeiçoar os atletas, não para formar grandes equipas. Não se compete só para ganhar, compete-se para errar, aprender, melhorar e aperfeiçoar. O objetivo é que compitam e que, dando-lhes ferramentas, procurando dar no treino contextos do jogo, possam aprender e melhorar. Se ganharem, melhor, porque todos jogamos para ganhar, claro. Nenhum jogador de formação quer entrar em campo para perder. No entanto, não devemos querer miúdos que queiram mais ganhar do que jogar. Queremos que tenham mais vontade de jogar e de desfrutar do que de ganhar.
Esse espírito apaixonado pelo jogo e livre de amarras tácticas provém da rua, um habitat futebolístico cada vez mais em vias de extinção. O desenvolvimento das grandes cidades, o aumento do crime e uma maior pressão parental nos estudos afastaram as crianças do futebol de rua. Joga-se muito menos futebol que antigamente. Craques como Maradona, Messi ou Ronaldo Nazário de Lima são filhos da rua, saiam de casa pela manhã e só regressavam estoirados ao final do dia. O futebol era a sua religião, a quadra a sua igreja e o resto era magia, liberdade, fintas e golos. Hoje em dia, os miúdos não jogam na rua tornando-se um problema no desenvolvimento do talento. Na rua tinham que se adaptar aos buracos da estrada, belo simulador de terrenos irregulares, a jogar com jovens mais velhos ou a jogar descalços. Pior que isso, as crianças são levadas desde cedo para as academias de futebol onde, inúmeras vezes, são privadas de jogar ou até mesmo de tocar na bola, passando uma hora a realizar circuitos, a fintar cones, a permanecer em filas ou a rematar para alvos. As questões que eu coloco muitas vezes são: Mas onde é que estão esses elementos num jogo de futebol? Faz sentido este tipo de trabalho? Estamos a potenciar alguma característica? A criança/jovem vai para a academia para jogar, para contactar com a bola, acelerar, fintar e fazer golos, aprender o que é o jogo ou para fazer circuitos e aguentar 2min até poder tocar novamente na bola?
Outro factor castrador é a limitação de toques nos exercícios, fazendo com que os mais criativos e habilidosos não consigam expor o seu futebol. Se uma criança não desenvolver a finta aos 8, 10 ou 12 anos não será aos 23 que o conseguirá fazer. Os atletas devem ser livres de fintar, fintar e fintar. A repetição milhares de vezes dos gestos técnicos promoverá a melhoria contínua dos seus skills e truques.
A adaptabilidade do treinador de futebol de formação é mais um dos factores mais importantes ao contactar com várias faixas etárias. A virtude está em saber adequar os conteúdos, comunicação e rigor consoante a faixa etária com que trabalha. Até aos 11/12 anos os miúdos devem jogar, jogar muito e consequentemente errar muito. A partir dos 13/14 anos devem começar a compreender o jogo, o que fazer nos vários momentos do jogo, aperfeiçoar lacunas individuais. Aos 16/17 anos o treinador deve começar a prepará-los para o alto rendimento e para as exigências do mesmo.
Assim, o papel do treinador de futebol de formação assume-se como essencial para o desenvolvimento do jovem atleta, devendo respeitar a singularidade de cada um dos mesmos, evitando castrar o que eles têm de melhor. Ninguém pede a Messi que jogue mais com o pé direito quando resolve com o esquerdo, não é verdade? Será que Ronaldinho aprendeu a fintar os seus opositores a pentear a bola para evitar meia dúzia de cones? E se o seleccionador da Argentina pedisse para jogar a dois toques, Maradona teria feito o golo à Inglaterra no México 86?
Pensem nisso!
REDIGIDO POR: Nuno Mota
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